1.VITTORIO CATANEO

O choque familiar percorre meu corpo inteiro quando minha mão fechada atinge as costelas do homem à minha frente. Sem parar de mover os pés no tatame por nem um segundo, volto os braços à posição de defesa, protegendo o rosto com os punhos enquanto o soldado com quem luto tenta se estabilizar sobre as próprias pernas.

Ele cambaleia, mas, no instante em que reencontra o equilíbrio, me ataca, apostando na velocidade da sua reação como elemento surpresa. E talvez funcionasse se não fosse eu o seu adversário. Flexiono os joelhos, esquivando-me de seu ataque antes de entrelaçar minha perna direta à sua esquerda e derrubá-lo no chão.

— E você está morto. — digo ao pressionar meu antebraço contra o seu pescoço e as pupilas do homem se dilatam com a percepção. Um movimento e eu poderia quebrar seu pescoço, aqui e agora.

Gotas de suor escorrem pelo meu rosto e costas à medida que a camada dele cobrindo toda a minha pele se torna maior. O garoto abre a boca como se tivesse a intenção de se desculpar, mas a fecha, percebendo a tempo o erro que isso seria. A fraqueza oferece apenas duas opções, e se desculpar pela vergonha de ser fraco não está entre elas: ou você melhora ou você morre.

— Deixe as crianças em paz, irmão. Brigue com alguém do seu tamanho. — Ergo o olhar e encontro Tizziano passando pelas cordas do ringue.

O sorriso fácil de sempre, pendurado nos lábios, não disfarça aquilo que o corpo exposto, vestido por nada além de suas muitas tatuagens e uma boxer, denuncia: o que quer o infeliz tenha vindo fazer no centro de treinamento, me enfrentar não estava em sua lista de tarefas. A mudança de planos só pode significar uma coisa.

O pouco relaxamento que tinha conseguido à base de socos e pontapés na última hora se esvai, e eu me levanto, dispensando silenciosamente o garoto que eu praticamente sufocava. Vai ser uma boa lição.

Sputa il rospo[1]!— exijo quando Tizziano para à minha frente, terminando a última volta da faixa de proteção nas mãos e, se eu tivesse alguma dúvida de que subir no tatame era uma mudança em sua rota, ela se esvairia agora.

Meu irmão não se importa de esfolar os nós dos dedos a menos que precise manter uma fachada de civilidade e ele quase nunca faz questão disso. E, se ele tem algum lugar para ir, definitivamente, não deveria estar aqui. Tizziano dobra o pescoço para um lado e depois para o outro antes de se colocar em posição de ataque e dar de ombros.

— Eu não tenho boas notícias, então vou compensá-las primeiro. — avisa, tentando o primeiro soco, e eu desvio com facilidade.

Mas, diferente dos homens que entraram no ringue antes dele, o subchefe não tem medo de me atingir e emenda uma série de tentativas à primeira. Uma delas me acerta no ombro graças a um movimento rápido o suficiente para evitar que a porrada fosse no rosto.

Alguém do meu tamanho, de fato.

Cuspo no chão antes de, movendo os pés e os ombros, avançar, sem nunca abaixar a guarda. Meu irmão se esquiva, avançando quando recuo e recuando quando avanço, a intensidade dos golpes trocados sendo apaziguada apenas pela expectativa do que o filho da puta tem a dizer e não diz.

— Eu não estou me sentindo particularmente paciente hoje, Tizziano. — aviso, e ele sorri antes de responder.

— Você nunca está, Don.

— Então por que você está disposto a testar a paciência que eu não tenho? — Avanço, sabendo da abertura que estou dando para ser socado nas costelas. O golpe vem, mas não me detêm. Continuo até que meu irmão esteja preso contra as cordas.

O corpo já tão suado quanto o meu está ofegante e totalmente desprotegido enquanto ele mantém os braços erguidos na frente do rosto em mais um gesto precavido. O primeiro soco é em seu abdômen, o segundo, na costela e o terceiro, em seu peito.

O sorriso civilizado muda, transformando-se no maníaco com o qual me acostumei quando Tizziano e eu ainda éramos crianças. Com apenas três anos separando as datas dos nossos nascimentos, eu lido com esse filho da puta há muito tempo, às vezes, muito mais do que eu gostaria.

Em um movimento calculado, meu irmão nos leva para o chão, livrando-se das cordas que o continham. Os minutos são engolidos pelos golpes que trocamos, até que o subchefe finalmente decida abrir a boca.

— O carregamento que deveria chegar ao Texas hoje, pela manhã, não chegou. — anuncia, recuando e abaixando os braços. Eu paraliso no meio do movimento, impedindo-me de lhe acertar mais um golpe, entendendo sua disposição em falar como o fim do nosso embate.

Movo os olhos de um lado para o outro, sem destino, correndo em volta dos meus próprios pensamentos, descobrindo o que fazer com essa informação.

— Por quê?

— Isso é o que eu estou indo descobrir. Tenho uma reunião com o secretário de segurança em — Ele ergue o pulso e olha para o relógio ali. — Uma hora. Eram os contatos dele nos Estados Unidos que deveriam garantir a chegada da carga em segurança.

— Onde ela estava quando tivemos notícias pela última vez?

— No Novo México, na noite passada.

— Isso fede. — digo, afastando-me do centro do tatame e pegando a toalha pendurada sobre as cordas.

Seco o rosto e os ombros antes de empurrar os fios de cabelo molhados de suor para trás enquanto minha mente dá volta atrás de volta sobre o que o desaparecimento da carga pode significar. Me apoio nas cordas, deixando que meus olhos varram o centro de treinamento.

Pelo menos trinta homens circulam pelo espaço amplo fazendo uso dos equipamentos de treino. O CT seria facilmente confundido com uma academia se não fosse pela pintura na parede de frente para a porta. A cruz, a rosa e o punhal estampam o concreto da mesma forma que estão tatuados na pele de cada um dos homens circulando pelo complexo, inclusive a minha.

Isso e os andares subterrâneos cujos treinamentos abrigados jamais poderiam ser confundidos com algo tão comum quanto as atividades comportadas por uma academia. Não. É neles que La Santa forja seus homens em suor, fogo e cinzas.

Tizziano me segue, pegando a garrafa de água do chão e usando-a para molhar o rosto. Depois, também se apoia nas cordas.

— Concordo. Usar o carregamento como isca para a CIA[2] foi uma boa ideia, no fim das contas. — diz e eu assinto.

— Se é que isso realmente tem a ver com a CIA. Quero notícias assim que você as tiver.

— Será feito, Don.

— Também quero olhos e ouvidos sobre Mattarazzo. Nós já fizemos demais por aquele filho da puta para ele se mostrar incapaz de garantir a segurança de um carregamento de armas. Se ele não me for útil quando preciso, não me é útil para nada.

— Já está feito. — avisa e não me surpreende nem um pouco.

Tizziano não ganhou o cargo de subchefe por ser meu irmão. Nenhum dos meus irmãos o fez. Diferente da Cosa Nostra, a Sagrada não premia o nepotismo. O sangue é importante, mas não é tudo.

Se cada um deles não tivesse se provado, repetidas vezes, homens feitos capazes, não estariam onde estão hoje. Nem mesmo eu, sendo o primeiro filho do meu pai, ocuparia o lugar de Don depois de seu afastamento, apesar de sua indicação, se não tivesse me provado capaz disso. E eu o fiz.

Negócio após negócio. Morte após morte. Visita após visita ao inferno, e nos vinte e seis anos desde que ganhei meu crucifixo, minha rosa e minha adaga, e foram muitas. Aos trinta e oito anos de idade, não há nem uma parte de mim sequer que não pertença à Sagrada.

— Bom. — digo, já abrindo espaço entre as cordas para passar por elas. Meu irmão aproveita a deixa.

— Está saindo?

— Estou. Gianni pediu uma reunião, alguma coisa sobre os protocolos da viagem ao Brasil. — Isso faz Tizziano sorrir de orelha a orelha, deixando completamente de lado a seriedade da conversa que acabamos de ter.

— Tem certeza de que não precisa que eu vá nessa viagem? — Arranho a garganta em desdém.

— Você só está pensando em bocetas brasileiras, Tizziano.

— Estou pensando em bundas e peitos brasileiros também. — Os olhos verdes brilham antes de meu irmão piscar apenas um deles em minha direção.

— Talvez eu deva te arrumar uma esposa, então. — A sugestão apaga imediatamente o sorriso de seu rosto.

— Não tem graça, Vitto. — diz entre dentes e minha reação não passa de um sutil arquear de sobrancelha, não é como se eu me importasse.

Se Tizziano ou até mesmo eu ainda não nos casamos, é somente porque ninguém ofereceu um negócio que valesse o suficiente para que eu envolvesse o meu nome ou o do meu subchefe em um acordo de casamento, e ele sabe disso.

— Don. — Interrompo meus passos e olho para trás quando a voz familiar me chama. O velho Ricardo Ricci, Caporegime de Messina, me encara a alguns metros de distância, aproximando-se a passos rápidos e curtos.

Franzo o cenho, porque eu não esperava vê-lo aqui. Dario, um dos meus homens de confiança está parado próximo, com as mãos entrelaçadas à sua frente. O terno impecável em seu corpo diz que ele está pronto para os nossos compromissos do dia, mesmo que eu ainda não esteja.

— Sim? — digo ao ficar de frente para Ricardo. — Nós temos uma reunião, Ricci? — pergunto, mesmo sabendo que a resposta é não.

— Não, Don. Mas, se for possível, eu gostaria de conversar. — A agenda planejada para o dia praticamente grita em minha mente enquanto eu assinto, já pensando nas reorganizações que precisarei fazer.

— Sobre o que, Ricardo?

— Os Castellani, Don. Eles disseram não para a sua proposta. — O aperto em punho da minha mão é uma reação automática, assim como o movimento em minhas narinas.

— Então nós precisamos nos certificar de que eles entendam que o não nunca foi deles para dar.

2. GABRIELA MATOS

Prendo a respiração, engolindo a vontade de vomitar as tripas que toma conta do meu estômago no instante em que tenho a visão completa do quarto onde estou prestes a entrar e, pior, limpar.

Eu correria para o banheiro, mas se as experiências anteriores serviram para alguma coisa, foi para me ensinar que o quarto é sempre apenas uma prévia do nível de desejo de morte que encontrarei na suíte.

A mancha úmida sobre a cama desfeita me faz enrugar o nariz ao olhar para ela e para o preservativo descartado ao seu lado. Aperto os olhos quando noto, um pouco mais a direita, a textura branca e gelatinosa. Grunho e desvio os olhos. Eu odeio a minha vida.

— Vamos lá, Gabi. Você consegue. Você sempre consegue. — digo em voz alta porque sei que apenas pensar não será o suficiente e mesmo que ouvir também não o seja.

Expulso o ar dos pulmões com força e finalmente empurro o carrinho de produtos de limpeza para dentro do quarto. Olho para ele pensando pela milésima vez, apenas hoje, que ele seria o suficiente para resolver meus problemas por um mês.

A droga de um carrinho, vendido numa feirinha qualquer e que poderia ser comprado pelos donos da casa para que faxineiras como eu conseguissem se locomover por ela enquanto limpam, resolveria meus problemas.

Quão triste é que isso seja o valor da minha vida? Me mato de trabalhar por duas semanas para conseguir a quantia que um carrinho de limpeza usado me renderia em um dia.

Meus olhos ardem e meus músculos doloridos depois de horas de faxina gritam em protesto enquanto eu decido por onde começar no cômodo recém-aberto. Balanço a cabeça de um lado para o outro decidida a parar de pensar ao perceber que, se eu continuar me importando, não vou sair daqui hoje.

Não preciso me importar, não preciso pensar. Só preciso fazer.

O relógio sobre o painel da TV, aquele em que uma calcinha vermelha e usada de renda está esquecida, me diz que já são três da manhã. Cinco horas. Cinco horas de faxina sem comer nada e eu ainda não estou exatamente perto do fim.

O triplex na Barra da Tijuca foi vítima de uma festa de arromba na noite passada, e eu sou a responsável por devolver a ele sua dignidade, não importa se isso vai custar a minha. Começo reunindo as roupas espalhadas pelo ambiente. Uma camisa, uma calça, um vestido, um par de saltos, a calcinha e uma cueca.

Depois de deixar tudo dentro do cesto de roupas sujas no carrinho, é a vez da roupa de cama, e eu agradeço a Deus pelas luvas de borracha. Eu sei que, teoricamente, não dá pra pegar uma DST[3] só tocando nos lençóis sujos de alguém, mas pelo amor de Deus.

Por um breve segundo, minha mente viaja, imaginando como seria se eu fosse a dona da calcinha vermelha. Se a minha vida fosse a dela. Uma vida alimentada por bebidas caras, comida chique e calcinhas de grife que eu não me importaria em deixar para trás. Eu rio antes mesmo que a imagem esteja completa em minha imaginação.

Balançando a cabeça de um lado para o outro, puxo a bagunça de tecido sobre o colchão em minha direção. Não disposto a colaborar, um dos travesseiros cai no chão quando eu termino de retirar a fronha e eu amaldiçoo, porque ainda não estou disposta a descobrir que tipo de monstro vou encontrar debaixo da cama hoje.

As camas dessas casas são um tipo pervertido e nojento de kinder ovo que sempre carregam surpresas nada agradáveis. Da última vez, achei uma boneca inflável absurdamente realista e assustadora. Respiro fundo, preparando-me mentalmente, dizendo que não importa o que seja, é só tirar, limpar e ignorar.

Me curvo, deixando a bunda para o alto e, quando puxo o travesseiro, ele arrasta algo que estava debaixo da cama consigo. É claro que arrasta. Porque todo castigo para pobre é pouco.

No entanto, quando ergo a peça branca e encaro a surpresa que ficou no chão, ela não me parece nada com uma surpresa ruim. Pisco, depois olho para os lados, desconfiando de que seja algum tipo de pegadinha.

Há seis meses presto serviços para a empresa de limpeza em que estou trabalhando como freelancer hoje e, nas mansões cuja dignidade eu restaurei às custas da minha própria, eu já encontrei todo tipo de coisa esquisita, mas um bolo de dinheiro é a primeira vez.

O suor em minha pele esfria, passando a me cobrir por um motivo totalmente diferente da exaustão de antes. Enquanto olho para rolo de dinheiro, é impossível não tentar imaginar quantas notas tem ali mesmo que eu tenha a certeza de que jamais seria capaz de descobrir quantas notas tem num bolo por sua grossura. Notas de duzentos reais.

Eu achei que eram um mito, porque embora elas já tenham sido lançadas há mais de um ano, até hoje, eu ainda não as tinha visto. Sendo muito honesta, não me lembro quando foi a última vez que eu vi uma de cem.

Me abaixo. Estico a mão para o dinheiro, mas recuo antes de tocá-lo. Mordo o lábio e, outra vez, olho ao meu redor. Me pergunto se algum dos objetos decorativos espalhados pelo quarto poderia ser uma câmera de segurança como aquelas que as mães de crianças pequenas usam para espionar as babás. Se for, o que essa cena deve estar parecendo agora?

Eu não sou uma ladra — digo para mim mesma — Mas esse dinheiro… Ele tornaria as coisas tão mais fáceis… Talvez eu até pudesse ir embora.

Eu poderia deixá-lo em casa e ir embora. Sumir no mundo, ser livre. O desejo me atinge bem no meio do peito como uma flecha. Quantas vezes ele já me atravessou a mente? Balanço a cabeça de um lado para o outro, negando.

Eu não sou uma ladra. Eu não sou uma ingrata. Eu jamais poderia simplesmente ir embora. Eles precisam de mim. Não me restaram muitos motivos para que eu possa me orgulhar de mim mesma, mas ainda posso me orgulhar dessas duas. Eu não sou uma ladra e eu não sou uma ingrata.

Finalmente toco o dinheiro. Pego o maço grosso de notas e o coloco sobre a mesa de cabeceira, ainda olho para ele por quase um minuto inteiro deixando minha mente sonhar com todas as possibilidades que nunca serão minhas. Sonhos que morrem no instante em que ergo os olhos de volta para o quarto imundo, sabendo que não há escapatória, esse é o meu lugar.

***

A água gelada acorda minha pele, mas todo o resto do meu corpo continua semimorto. Pisco os olhos pesados de sono e expiro com força. O uniforme da equipe de limpeza está grudado em mim, mas quem pode culpá-lo? Eu estou inteira uma bagunça grudenta de suor.

Apoio os braços esticados sobre a pia e fecho os olhos. Isso é fácil de fazer, é a primeira coisa fácil de fazer nas últimas horas. Não sei quanto tempo se passa até que eu me dê conta de que cochilei. Em pé, grudenta de suor, no banheiro da dependência de empregada da casa que acabei de limpar às quatro e meia da manhã.

Forço minhas pálpebras para cima. A visão ainda fica embaçada por alguns segundos antes que eu consiga fixar meu olhar no espelho e me arrepender disso imediatamente. Eu estava errada, não estou uma bagunça. Eu estou um horror.

Todo o frizz do mundo se concentrou nos meus cabelos, fazendo com que os fios mais curtos e quebrados se desprendam do coque no alto da minha cabeça e se coloquem em posição de sentindo. Parece que levei um choque, ou doze.

Meus olhos estão vermelhos, o castanho das íris está cotidianamente apagado e minha pele está doentiamente encardida, quase como se tivesse absorvido toda a sujeira que tirei dessa casa para si mesma. E, é claro, eu estou fedendo.

A imagem é tenebrosa, mas não é preocupante. É, na verdade, quase familiar. O que não é nada familiar é a mancha que descubro na lapela do uniforme. Puta merda! Me afasto da pia para ter certeza de que meus olhos sonolentos não estão me pregando uma peça, mas, ao olhar para baixo em busca do tecido, o círculo azulado continua no mesmo lugar em que ele estava quando o notei no meu reflexo.

Merda, merda, merda! Andressa vai me matar! Ou, pior, ela vai querer descontar a conta da lavanderia da minha diária, ou, pior ainda, o valor de um uniforme novo. A ideia faz meu coração acelerar e, de repente, eu estou mais acordada do que nunca.

Aproximo-me outra vez da pia minúscula e me inclino sobre ela, tentando levar a lapela até a torneira. Não funciona. Meu levanto. Meus olhos piscam freneticamente e minhas mãos abrem e fecham uma vez atrás da outra. Inferno, inferno, inferno!

Começo a desabotoar o uniforme. O problema é que a droga da roupa de trabalho é um macacão, então, ao tirá-la do corpo, eu fico seminua, vestindo nada além de calcinha e sutiã de algodão. O frio do ar-condicionado central me atinge imediatamente, arrepiando cada pelo do meu corpo com a súbita mudança de temperatura.

Dobro o pescoço para um lado e, depois, para o outro, estalando-o. O barulho alto traz consigo o pensamento idiota de sempre: sou crocante. Dou uma risadinha completamente fora de hora e abro a torneira. Aproximo o tecido da água corrente com a intenção de molhar apenas a parte manchada, mas miséria pouca é bobagem, e eu tropeço nas minhas próprias pernas, paradas, impulsionando o corpo para frente e quase batendo com a cabeça na louça da pia.

No último segundo, reencontro meu equilibro evitando a desgraça maior, ou, pelo menos, aquilo que eu acreditava ser a desgraça maior até me dar conta do estado em que meu macacão se encontra. No meu desespero para não quebrar os dentes, soltei o tecido dentro da pia e, agora, ele está completamente encharcado.

Eu fico olhando para o tecido submerso em uma pequena poça d’água dentro da pia por alguns segundos antes de me dar conta de que se eu não fechar a torneira, ninguém vai fazer isso por mim e, em breve, além de precisar lidar com o fato de que a única roupa que eu trouxe para vestir está completamente encharcada, eu vou precisar lidar com uma pequena inundação na casa de um cliente da agência. Uma inundação causada por mim. Ai, Jesus! Por que, hein? Por quê?

Fecho a torneira e levanto o macacão que estava tampando o ralo. O excesso de água escoa e eu dobro o tecido até conseguir um tamanho bom o suficiente para torcer. Não adianta muita coisa. O macacão para de pingar, mas toda a parte de cima está molhada e a mancha continua no mesmo lugar que estava antes.

— Um problema de cada vez, Gabi. — digo em voz alta na tentativa de me organizar. — A mancha, então.

Exausta, alerta e com os nervos à flor da pele, eu volto a abrir a torneira e passo a barra de sabão sobre a mancha. Depois de quase quinze minutos de uma esfregação sem fim, me dou por vencida. Sabonete não vai resolver meu problema. Seja lá de que seja essa mancha, eu preciso de algo mais potente do que a barra com cheiro de flores que tenho aqui. E, na lavanderia, eu poderia usar a secadora.

Olho para o macacão encharcado, depois, para mim mesma e, por último, para o espelho. O suor já seco no meu corpo é resposta mais do que o suficiente para a pergunta que eu não fiz. Não há a menor condição de eu vestir a roupa molhada para ir daqui até a lavanderia. Eu vou ficar doente e eu não posso ficar doente.

Não com Raquel prestes a voltar para casa depois de quase um mês internada. Abaixo a cabeça, pensando em quanto medo minha irmãzinha deve ter sentido ao passar, todas essas noites, sozinha no hospital. Eu deveria ter estado lá, eu queria ter estado lá.

Deus sabe o quanto e que passei cada hora que pude tentando ganhar dinheiro o suficiente para comprar seus remédios quando ela finalmente voltasse para casa. Se Fernanda colaborasse. Se se preocupasse com alguma coisa além do próprio umbigo. Se nosso pai tentasse, se ele, pelo menos, tentasse. Expiro com força, de repente, sentindo minha mente tão exausta quanto o meu corpo.

Aperto os olhos, interrompendo o caminho que meus pensamentos começavam a seguir e me obrigando a focar no aqui e no agora. São pouco mais de quatro e meia da manhã.

O dono do apartamento está dormindo desde que eu cheguei ontem, no início da noite, para começar a limpeza. E, embora tenha me dado até as cinco para terminar a faxina, duvido muito que ele vá acordar para conferir. Se o nível de sujeira em que a casa estava for diretamente proporcional à qualidade da festa que ele deu, eu posso entender por que o bonito está tão cansado.

E, além disso, a lavanderia fica logo ali. Por mais azarada que eu seja, não tem como uma caminhada de três metros, dentro de um apartamento imenso, dar errado. Decido. Torso o macacão algumas vezes para que ele não fique pingando por todo o caminho, depois o enrolo em uma bola de tecido e saio a passos rápidos da dependência de empregada.

O ar-condicionado fica ainda mais forte e um arrepio atravessa meu corpo inteiro. Passo pela área gourmet, depois, pela cozinha e, enfim, chego à lavanderia. Vacilando na minha própria certeza, eu respiro aliviada, mas não me dou muito tempo para isso. Procuro o tira manchas na despensa de material de limpeza e, ao encontrá-lo, o levo para o tanque.

Com o produto certo, a mancha sai fácil. Enxáguo o uniforme e o torso da melhor maneira possível antes de colocá-lo na secadora. O relógio pendurado na parede me avisa que já são cinco e cinco da manhã. Bem, tecnicamente, o dono da casa me disse para terminar a faxina até as cinco, não me disse para sair daqui até as cinco. Dou de ombros depois de programar a secadora.

Mais quinze minutos e eu sumo daqui. Me apoio na bancada e cruzo os braços, aguardando. Meu pé começa a bater impaciente no chão e minha garganta seca dói quando me esforço para engolir. Olho para a porta aberta da lavanderia e encaro a geladeira imensa de frente para mim. Dou alguns passos na direção da saída e espio pelo batente, primeiro um lado do corredor, depois o outro. Tudo vazio.

É só um copo de água. Saio da lavanderia e, me movendo o mais rápido que posso, me sirvo de um copo de água e já o estou lavando para colocá-lo de volta no lugar quando sou surpreendida por uma voz de menina.

— Eu não acredito nisso!

O copo escorrega da minha mão e cai dentro da pia, mas eu não sei se quebra, porque me viro de olhos arregalados e me deparo com uma mulher loira me lançando facas pelos olhos.

— Eu-eu… — começo, mas gaguejo e não tenho a chance de completar o raciocínio, porque ela me interrompe.

— Você vai sair daqui agora! — sibila. — Eu já falei pro Guilherme que eu não quero as vagabundas dele na minha casa! — Eu pisco, atordoada, ao me dar conta do que ela acha que está acontecendo aqui e abro a boca para me explicar, mas nenhum som sai. Essa mulher é louca! Ela realmente acha que eu estou dormindo com o dono desse apartamento? — Você é surda, garota? Pra fora! Agora! — exige e, quando eu não me movo ou defendo, ela começa a caminhar na minha direção, me despertando.

— Não é nada disso que a senhora está pensando! — Isso faz a mulher gargalhar.

— Vocês não têm nem mesmo a decência de serem criativas nas desculpas. — debocha ao fechar os dedos ao redor do meu braço com força. A mulher praticamente me arrasta na direção da porta, recusando-se a ouvir minhas tentativas de explicações e, quando dou por mim, estou no corredor do prédio, seminua, sem lenço nem documento.

Eu estava ridiculamente errada. Uma caminhada de menos de três metros dentro de um apartamento definitivamente poderia dar muito errado.

 3. VITTORIO CATANEO

Baldes, extintores e mangueiras empunhados por homens vindos de diferentes direções tentam, a todo custo, apagar o incêndio, enquanto as mulheres correm, fugindo das chamas, afastando as crianças, os animais e tentando preservar tudo o que conseguem das labaredas ansiosas para devorar as centenas de fileiras de plantações de flores até a casa principal da fazenda Castellani.

À distância, o calor do fogo não é páreo para o sol a pino da Sicília que me faz suar sob o terno bem cortado. Com uma mão enfiada no bolso da calça e a outra girando um cravo branco entre os dedos, observo o caos instaurado: lágrimas, gritos, paredes e telhados ruindo. El dio de la Sicília, eles dizem. Hades também era um deus, afinal.

Olho para a flor em minhas mãos. Uma lembrança que pedi que meus homens me trouxessem antes de abandonarem um isqueiro aceso na plantação já encharcada de gasolina, trabalho feito por um pequeno avião, hoje mais cedo.

A maior parte das pessoas tem memórias afetivas invocadas pelo cheiro de cozinhas, pela sensação do vento no rosto ou do orvalho na pele. Eu, no entanto, me torno incapaz de refrear uma das minhas enquanto olho para a mesma flor que, um dia, me foi entregue como uma promessa de morte.

— Mio marito! — Nonna chora alto, e eu olho para ela imediatamente, assim que passo pela porta da sua casa. Eu gosto de vir aqui, mas não gosto quando os outros também vêm aqui.  

Inclino a cabeça, franzindo as sobrancelhas para o rosto vermelho da minha nonna e para as lágrimas que ela não para de derramar.

Ela nem mesmo olhou para mim, e ela sempre beija o meu rosto, depois, Tizziano, e, agora, a barriga da minha mamma, mas hoje ela não faz nada além de esconder o rosto nas mãos e continuar a chorar. Ela não é a única.

Minhas tias também estão chorando. As mulheres dos capos estão chorando. Tem muitas mulheres chorando e os homens também estão aqui. Minha mamma entrega meu irmão, que está dormindo, porque é um bebê, e dormir é tudo o que bebês sabem fazer, para Francesca, a cozinheira da minha nonna.

Depois, ela abraça a mamma do meu papa e isso só parece fazer minha nonna chorar mais. A casa está do jeito que eu não gosto, cheia dos outros como em muitos domingos depois da missa, mas não é domingo e não fomos à missa. Só que o padre também está aqui. Por que o padre está aqui?

Ninguém me dá atenção, nem perguntam pelo meu papa e essa é mais uma coisa estranha. Sempre perguntam pelo meu papa quando ele não está com a gente. Mas do que adiantaria se perguntassem? Eu também não sei por que ele ficou em casa ao invés de vir visitar i miei nonni.

Talvez ele soubesse que o nonno não estaria aqui. Disseram que ele morreu e eu entendi que era por isso que todos estavam chorando. Preciso perguntar a mio papa onde é essa missão, de morrer. Será que é tão longe assim para as mulheres acharem que precisam chorar?

Mais pessoas continuam chegando. Capos e soldados, todos são recebidos pelo consiglieri da famiglia. Por que mio papa não está aqui? Ouço outro choro alto, mas com esse eu já estou acostumado.

Tizziano acordou, e essa é a outra coisa que bebês sabem fazer além de dormir: chorar. Será que as mulheres aprenderam com os bebês? Ou foram os bebês que aprenderam com as mulheres? E por que os homens não estão chorando também? Eles estão sérios.

Mamma pega meu irmão do colo de Francesca e, logo depois, todos começam a sair da casa, menos nós, que ficamos para trás, até mesmo a nonna sai antes de Fabiano entrar e nos levar para fora. Paro de andar quando vejo os vários carros na frente e atrás do nosso, mas Mamma puxa minha mão.

Levanto a cabeça para olhar para ela e perguntar onde estão todos e por que tem tantos soldados com a gente. Mamma balança a cabeça de um lado pro outro, me dizendo para não perguntar, mesmo que eu ainda não tenha dito nada. Entramos no carro. Juliano dirige, como sempre, e Fabiano senta ao seu lado no banco da frente enquanto Mamma, Tizziano e eu estamos atrás.

Fico olhando para os carros enfileirados enquanto andamos. Mais uma coisa que eu devo perguntar a mio papa. As ruas estão vazias. Só saí por essas ruas duas vezes antes e elas estavam cheias, diferente de hoje, quando até as lojas estão fechadas.

O carro para de andar quando chegamos num lugar bonito com muita grama e placas no chão. Tem cruzes e anjos também. Será um tipo diferente de igreja? O padre também está aqui. Todos os que estavam na casa da Nonna estão aqui. A Nonna também está aqui. Ela continua chorando. As mulheres continuam chorando.

Só saímos do carro depois que os outros, na frente e atrás do nosso, estão vazios. Os soldados de mio papa estão com as armas na mão e eu franzo o cenho. Papa diz que um homem que precisa mostrar sua arma não sabe usá-la. Será que os soldados desaprenderam como se usa uma arma?

Mamma segura minha mão com força enquanto caminhamos na direção de onde todo mundo está junto. Tem um buraco na terra, e eu não sei para que ele serve. Por que estão todos reunidos ao redor de um buraco na terra? E por que todos estão segurando a rosa da Sagrada? Juliano não deixa que Mamma, Tizziano e eu cheguemos muito perto dos outros.

O padre começa a falar, e eu entendo. É uma missa. Esse deve mesmo ser um tipo diferente de igreja. Por que mio papa não veio à missa? E por que os soldados de mio nonno também não sabem mais usar suas armas? Todas elas estão à mostra.

Presto atenção na leitura do padre, depois, nas rezas. Mamma puxa minha mão quando anda na direção do buraco no chão. Nos aproximamos dele e eu espio do alto, mas não vejo nada, acho que é fundo. Mamma joga uma flor lá dentro. Uma rosa vermelha da Sagrada. Eu me viro quando sinto alguém mexendo na minha outra mão.

Um homem que eu não conheço está colocando uma flor nela, mas não é a da Sagrada. Essa é branca. Eu deveria jogar no buraco também?

— Para tuo padre! — O homem diz, mas eu não consigo perguntar por que antes de Mamma voltar a me puxar.

Não voltamos para o lugar onde estávamos parados, vamos direto para o carro e, quando a porta é aberta por Juliano, encontro mio papa lá dentro.

— Papa!

— Vitto. — Ele diz e beija minha testa quando subo no banco, ficando de joelhos.

Mamma não entra no carro. A porta é fechada e eu fico olhando através da janela enquanto Juliano a leva junto de Tizziano para o carro atrás do nosso.

— Pra você, papa. — digo, estendendo a flor quando me lembro dela. A testa de mio papa enruga enquanto ele olha para a minha mão.

— Onde você pegou isso?

— Um homem me deu. Ele disse que era para você. — Mio papa mexe o nariz de um jeito estranho. O jeito que ele mexe quando está irritado. Depois, pega a flor da minha mão. — Por que todo mundo estava chorando, papa? Eu devia chorar também? — pergunto, e ele não responde na hora. Papa demora. Será que está pensando?

— A partir de hoje, você vai aprender muitas coisas, Vitto. Chorar não é uma delas. Um Don nunca chora, Vitto. Um Don nunca falha, nunca desonra e, principalmente, um Don nunca se dobra.

— Eu não sou um Don, Pappa. Mio Nonno é o Don.

— Tuo Nonno foi um Don e hoje você começa a aprender como ser um.

A batida suave da porta do carro me arranca da minha lembrança, e eu me viro. Matteo sai do carro com uma expressão sabiamente neutra, embora lívida demais para o seu costumeiro bronzeado natural.

O Consigliere arrasta uma das mãos pelos cabelos loiros perfeitamente penteados para trás e dá uma boa olhada ao nosso redor e, principalmente, no vale abaixo de nós antes de falar.

— Eu suponho que você tenha um bom motivo para acreditar que incendiar a residência principal dos Castellani seria uma boa ideia apesar das nossas negociações em andamento com eles. — As palavras moderadas me despertam um desejo incomum de sorrir.

Quando o Tommazo Corleone morreu, muitos se opuseram à ascensão de seu filho ao cargo. Disseram que ele era jovem demais, cruel de menos, civilizado demais. E, assim como eu fiz ao assumir o cargo que um dia foi do meu pai, Matteo silenciou cada opinião contrária à sua nomeação e conquistou o respeito da organização membro a membro.

Sua compleição cortês é uma boa fachada para os negócios. As pessoas veem o que querem ver, e o aspecto sóbrio, de tatuagens escondidas e palavras elegantes de Matteo torna sua circulação em certos meios muito mais fácil do que a de Tizziano, por exemplo. Além, é claro, de o Consigliere ser um excelente negociador, mesmo que nós dois nem sempre consigamos concordar com os métodos um do outro.

— Seu vocabulário político é sempre algo a se admirar, Matteo. — elogio. — Achei que eu tivesse deixado claro que precisávamos enviar uma mensagem aos Castellani.

— E que mensagem exatamente você enviou, Don?

— Que as suas opções são todas as variadas formas de dizer sim. O não nunca esteve entre elas, não para mim.

— Você vai começar uma guerra. — avisa com o mesmo tom de quem anuncia o nascer do sol.

— Começar? Apesar da sua eloquência, nós não somos políticos, Consigliere.  Somos mafiosos. Nós vivemos em guerra, não seja dramático. — Matteo abre a boca para me dar uma resposta, mas o som de uma explosão seguido pelo ruir grave de algo pesado atrai a atenção de todos nós.

Observamos o teto da propriedade ceder e afundar naquela que era uma das construções mais antigas da Sicília. Os homens ao meu redor se mantêm atentos à Matteo, aguardando sua reação, qualquer reação. O Consigliere, no entanto, sustenta a fachada comedida ao limitar seus gestos a um acenar negativo de cabeça.

— Eu poderia ter exterminado o sangue Castellani da face ta terra e, então, pegado o que eu quero à força, mas a única coisa que eu matei foi uma casa ancestral e, — olho para o cravo branco em minhas mãos. — algumas plantas. Tenho certeza de que eles podem se recuperar dessa tragédia. — Viro-me, já caminhando na direção do carro estacionado. — Vamos lá. A pausa de vocês acabou.

Dario, Luigi, Salvatore e Antonio imediatamente assumem suas posições protegendo meus flancos, fronte e retaguarda. É Luigi, sempre à minha direita, quem abre a porta do carro para mim.

— Certifique-se de que eles saibam que eu não aviso duas vezes, Matteo. — digo por sobre o ombro, parado diante da porta aberta do SUV. — Se eu precisar enviar uma segunda mensagem, então as flores que sobreviverem ao fogo podem ser usadas para decorar os túmulos de cada maldito Castellani nesse mundo. Afinal, quando o inferno se cansar de arder neste lugar, o terreno estará pronto para ser um cemitério belíssimo, não acha?

Pego o cravo ainda em minhas mãos e, com ele, faço o sinal da cruz, tocando as pétalas brancas em minha testa primeiro, depois em meu queixo e, por último, em um ombro de cada vez. Eu rio antes de jogá-la precipício abaixo, porque, ao contrário do que as minhas palavras sugeriram, eu adoraria que os Castellani não tivessem entendido a minha mensagem.

Olho uma última vez para as chamas, agora, ainda mais irascíveis do que antes e, depois, para um Matteo ainda guardando silêncio.

— Eu acredito que seja de bom tom convidá-los para jantar. Eles estão tendo uma manhã difícil e podem ter alguma dificuldade em organizar as próximas refeições. Talvez comprar um faqueiro novo seja delicado da nossa parte. — sugiro — O que acha?

Os olhos do Consigliere não entregam nada enquanto ele caminha até mim, segura minha mão e beija o anel da La Santa.

— Tenho certeza de que eles ficarão comovidos com seu gesto, Don.

 4. GABRIELA MATOS

No instante em que fecho a porta de casa, encosto o corpo a ela e fecho os olhos, sentindo o coração correr como um louco no peito e a cabeça latejar como nunca. Eu não fazia ideia de que constrangimento poderia causar dor de cabeça, mas, se alguém veio ao mundo para descobrir esse tipo de coisa na prática, certamente fui eu.

Expiro, e cada sopro de ar que coloco para fora é uma tonelada de alívio sendo posta para dentro. Consegui. Cheguei ilesa e bem em casa. Humilhada, é verdade. Mas, sendo honesta, ser humilhada é só mais uma terça-feira comum para mim, então eu vou contar só as vitórias.

Sair da Zona Oeste do Rio de Janeiro, às cinco de vinte da manhã, seminua, sem dinheiro ou documentos, e conseguir chegar à Zona Norte com uma camiseta, um par de havaianas e minha integridade física é uma puta vitória. E eu nem vou comentar o fato de a camiseta e o par de havaianas em questão me ter sido doado por uma moradora de rua que teve pena do meu estado sem que eu nem mesmo a tivesse abordado.

Dos mesmos criadores dos assaltantes dando dinheiro para o assaltado comprar um celular melhor, veio aí a moradora de rua que deu roupas, milagrosamente limpas, para a faxineira escorraçada. Eu não deveria rir, deveria? Não, mas os cantos dos meus lábios se levantam sozinhos e eu faço força para manter a gargalhada que ameaça irromper pela minha garganta do lado de dentro.

É um reflexo estranho, porque, no próximo segundo, meus olhos estão ardendo a ponto de a vontade de chorar se tornar insuportável, e tudo o que eu quero fazer é me enrolar em uma bola no chão de concreto sob os meus pés e deixar que as lágrimas rolem livremente.

— Finalmente chegou no fundo do poço, Gabriella? Decidiu abrir as pernas por dinheiro? Não tinha uma roupinha melhor, não? — A voz de Fernanda é como uma martelada em meu cérebro sobrecarregado e eu abro os olhos para encontrar minha irmã parada a pouco mais de um metro de distância.

Não é como se ela pudesse estar muito longe, de qualquer forma. Não quando ambas estamos dentro de casa. O barraco onde vivemos é de apenas um cômodo de não mais do que três metros. Olho para a esquerda. Nosso pai está dormindo, inabalável, sobre uma pilha de colchonetes encostada à parede de lata.

O apito inconfundível do trem se aproximando me dá mais alguns minutos antes de precisar lidar com Fernanda. Morar dentro dos muros da linha férrea, literalmente na beira dos trilhos, tem essa vantagem. A cada seis minutos, você pode simplesmente ignorar uma conversa indesejada, porque a passagem do trem torna impossível manter qualquer diálogo, mesmo gritando. Mas, infelizmente, a locomotiva é rápida demais para o meu gosto.

— Bom dia pra você também, Fernanda. — digo, e um olhar mais atento em meio à semiescuridão que é nosso casebre sem janelas me diz que eu provavelmente deveria ter dito boa noite.

Minha irmã está embalada a vácuo numa minissaia de malha vermelha e um cropped que não deixa nada além dos bicos dos seus peitos para a imaginação.

— Você não respondeu. — lembra antes de dar um passo em minha direção e cambalear. O movimento me faz notar a garrafa em sua mão. Cachaça. Desvio os olhos e mordo o lábio. A vontade de chorar que eu senti há menos de cinco minutos foi completamente esquecida, invadida pela necessidade de lidar com os fatos. Como sempre, chorar é um privilégio que eu não tenho. — Finalmente decidiu abrir essas pernas por dinheiro? Achou alguém otário o bastante pra te querer?

— Não. — respondo simplesmente antes de, desviando de uma Fernanda instável, caminhar para o meu canto do casebre. Do lado direito, no fundo do cômodo. Deitar, eu só preciso deitar e, quando acordar, penso no próximo passo.

Pisco quando percebo a bagunça espalhada pelo chão molhado e franzo o cenho. Mas o quê? Ajoelho-me. Toco o chão com as pontas dos dedos, tentando entender como exatamente meus desenhos, antes presos à parede com durex, acabaram no chão gasto, encharcados do que quer que seja o líquido transparente que agora também umedece minha pele.

Arruinados. Meus papéis, meus desenhos, meu tesouro, minha única… Arruinados. Eu arfo quando o ar me falta. Meu peito se aperta em uma onda sufocante de desespero. É a isso que se resume viver por um fio. Toda e qualquer coisa pode simplesmente disparar o gatilho do fim e, de repente, eu me sinto exausta. Meus ombros caem e minha respiração falha.

Eu estou acordada a o quê? Trinta e oito horas? Quarenta? Levo os dedos ao nariz, querendo saber o que foi que arruinou meus desenhos e quando o cheiro alcoólico e enjoativo domina meu olfato, fecho os olhos, sentindo, em mais uma reviravolta, meu peito ser preenchido por uma raiva latente que expulsa a exaustão, a tristeza e toda e qualquer outra coisa.

Giro o pescoço e encaro Fernanda por sobre o ombro. Um sorriso debochado se desenha nos lábios borrados de batom vermelho da minha irmã. Seu rosto não está muito melhor. A pele branca, muito diferente da minha, está manchada por maquiagem escura no rosto e os cabelos descoloridos num loiro da cor de gema de ovo são uma bagunça espevitada. Fernanda estala a língua.

— Oops! — debocha. — Acho que entornei um pouco. — diz e levanta a garrafa em um brinde imaginário.

Só que ela não entornou nada sem querer. Ela arrancou meus desenhos da parede e, propositalmente, os encharcou para que não houvesse nada que pudesse ser feito para recuperá-los. Se eu não a conhecesse o suficiente para saber disso, a expressão de chacota em seu rosto faria questão de me contar a história completa.

Olho outra vez na direção do nosso pai adormecido. Será que ele estava dormindo quando ela fez isso? Se ele estivesse acordado, teria feito diferença? Eu sei a resposta para essa pergunta: não teria feito nenhuma diferença.

— E nem é como se você fosse boa, de qualquer maneira. — Ela dá de ombros, divagando, importando-se nem um pouco com o caos de sentimentos em que eu me desfaço bem diante dos seus olhos bêbados. — Por que você desenha? Você é péssima! Pra que insistir? Você nunca, nunca, vai melhorar! Anos e anos e ainda são os mesmos traços tortos, rabiscos…Você é uma piada, Gabriella, e nunca vai ser boa em nada! Insistir só te faz ser ridícula!

Não me dou o trabalho de responder. Parei de reagir às provocações da minha irmã há muito tempo, mais precisamente quando percebi que isso só a deixava mais cruel. Algumas pessoas, entendi, nascem apenas para isso, para serem cruéis, e é por isso que eu desenho.

Eu desenho porque esse mundo é feio demais para mim e, nos meus traços, tortos ou não, defeituosos ou não, eu posso inventar um mais bonito. Eu desenho porque em meio a uma infinidade de coisas ruins, eu preciso pelo menos tentar ver algo bom e não me foi concedido o privilégio de ter nada que pudesse ser chamado assim, então eu crio.

Eu desenho porque os meus traços são a única coisa que ainda me arrancam sorrisos gratuitos nos dias em que mesmo o sol está escuro demais. Eu desenho porque no papel, não importa a sua cor ou tamanho, eu sou livre. Algo que eu não sei ser fora dele.

— Não vai dizer nada? — cospe as palavras, irritada por eu estar ignorando suas provocações e, logo depois, arrota alto. — Bom, se você não arrumou um otário ainda, é melhor arrumar, porque o dinheiro que tinha em casa acabou. — avisa, conseguindo de mim exatamente o que queria, uma reação.

Eu pisco, ainda com o amontoado dos meus papéis arruinados nas mãos e expulso todo o ar dos pulmões em uma expiração lenta antes de levar meus olhos até o buraco no chão em que eu escondia o dinheiro. Só agora percebo que o lugar que antes ficava escondido sob um dos meus desenhos e sob o meu travesseiro velho está completamente à vista e vazio.

Totalmente vazio.

— Fernanda. — a palavra sai entre dentes e a resposta da minha irmã é uma risada baixa. — Era o dinheiro dos remédios da Raquel, porra! Era o dinheiro da taxa de energia! — digo, agora, olhando para ela.

— Eu tenho certeza de que, de onde veio esse, você tira mais. — zomba. — Especialmente agora. — completa ao descer o olhar pelo meu corpo e pará-lo sobre as minhas pernas nuas.

— Ela é sua irmã também. — murmuro sem poder acreditar que Fernanda realmente tenha feito isso, porque não, de onde veio aquele dinheiro, eu não tiro mais. — Ela só tem onze anos, Fernanda. Onze anos. — As duas últimas palavras saem num sussurro desesperado e são o suficiente para me fazer desistir de fingir que Fernanda não venceu mais uma vez.

Uma única lágrima desliza pela minha bochecha, marcando minha pele numa lentidão agoniante. A mesma com que sinto o buraco no meu peito se abrir. Raquel deve voltar para casa amanhã, e o dinheiro das compras, da taxa de energia, o dinheiro dos remédios da minha irmã caçula foram pelo ralo. Ou, melhor, pela garganta de Fernanda, se a garrafa em sua mão for algum indicativo.

Semanas de trabalho. Semanas de faxinas e de todo e qualquer outro bico que eu conseguisse, porque a saúde de Raquel é frágil demais. Viver aqui já é um esforço constante para os seus pulmões fracos. Sem a alimentação correta? Sem os remédios? Sem energia para que ela faça nebulização? Abandoná-la no hospital é provavelmente uma escolha mais misericordiosa.

— Azar o dela. — É sua resposta seca antes de se virar sem nem uma gota de remorso sequer e sair de casa, batendo a chapa de madeira que nos serve como porta.

 5. VITTORIO CATANEO

No centro do redondel[4], eu mantenho o olhar firme no garanhão de pelagem negra me encarando em uma das extremidades. Galard permanece parado apesar da minha orientação clara para que ele circule.

Descobri muito cedo que exercer o controle era algo que me mantinha sob controle, e os cavalos são animais estupidamente inteligentes. Domá-los é muito mais difícil do que fazer um ser humano se dobrar. A violência coloca a maioria dos homens de joelhos enquanto apenas torna os cavalos mais irascíveis.

Dominar uma criatura como Galard requer mais, muito mais do que ser habilidoso com as palavras, com instrumentos de tortura ou com uma arma, e eu os respeito por isso. Há quem diga que os cães são melhores do que os seres humanos. Eu diria que os cavalos são, definitivamente, mais dignos de admiração do que a raça humana como uma classe.

Enquanto Galard e eu travamos uma batalha silenciosa de vontades, minha mente processa as últimas informações que recebi de Tizziano. O carregamento desaparecido foi de fato apreendido pela CIA, no entanto, essa não é parte surpreendente da história. O sumiço sem alarde de mais de um bilhão de dólares em armamento já era algo a se estranhar.

Uma operação como essa, se bem-sucedida, colocaria o nome de, no mínimo, meia dúzia de agentes na pauta de Washington, e essa é a única coisa com que os norte-americanos realmente se importam: visibilidade. O desperdício da oportunidade sempre me pareceu muito mais preocupante do que o sumiço da carga, propriamente dito.

Uma preocupação que se mostrou justificada depois da ligação que meu subchefe recebeu. Eles nos procurarem antes que pudéssemos ter a confirmação de que a ação havia partido do departamento norte-americano é inaceitável e coloca todos os meus sentidos em alerta.

Adam Scott acha que pode me obrigar a colaborar com seu departamento. A ideia seria risível se não fosse tão estúpida. Ainda que ele pudesse estabelecer qualquer relação entre a carga-isca e eu ou a organização que lidero, o que ele não pode, alguém que tem a audácia de me propor uma negociação deveria saber melhor. Não há um homem de honra sobre a face da Terra que se dobraria a uma autoridade que não seja seu Don.

Não há nem um homem sequer respirando sob o meu comando que se curvaria a qualquer coisa além da Sagrada. Galard bufa, desafiador, e eu não lhe dou atenção, o que só o deixa mais irritado. Adam Scott vai desejar ter tido essa chance.

O som de passos imediatamente coloca o Puro Sangue em alerta e, pelo canto dos olhos, vejo Cesare se aproximar da arena de treinamento. Meu irmão, no entanto, interrompe sua aproximação muito antes de alcançar o cercado de madeira branca e, como se entendesse o que significa ter o respeito do executor da La Santa, Galard se põe em movimento, decidindo que é um bom momento para obedecer à ordem que lhe dei há mais de cinco minutos.

Mantenho a postura impassível, recusando-me a demonstrar qualquer tipo de apreciação pelo comportamento caprichoso do animal. Ele não precisa de reforço positivo para o orgulho que ostenta por natureza.

— Muito bem. Terminamos por hoje. — digo para ele quando sua última volta do treinamento de hoje é concluída.

Ele ainda aguarda por quase um minuto inteiro antes de aceitar que a demora em acatar minha ordem terá consequências e, quando o cavalariço receoso abre o portão do redondel, Galard trota selvagemente de volta para os estábulos.

— Você já matou homens por menos que isso. — Cesare comenta ao finalmente se aproximar, e eu não desvio minha atenção de Galard até que ele esteja dentro dos estábulos.

Os olhos de meu irmão seguem os meus, atentos aos movimentos do cavalo e, depois, a qualquer sinal de algo incomum no lugar de destino do animal. Cesare faz questão de impor certa distância entre si mesmo e os cavalos.

O segundo de meus irmãos é o mais selvagem de nós quatro e, a cada vez que o vejo reagir assim aos meus bichos de estimação, me pergunto se esse receio todo provém de sua identificação com a selvageria deles. Meu temperamento é, por vezes, descrito como letalmente silencioso. Mas a mudez de Cesare, sem dúvida alguma, grita.

— Isso é porque eu não tenho pessoas favoritas. — respondo, retirando as luvas e enfiando-as no bolso da calça de montaria.

Passo pela porteira da cerca e caminho até a lateral da estrebaria. Abro a torneira aninhada na parede de pedras e molho o rosto, lavando o suor que o sol do fim da manhã fez brotar em minha pele.

— Tizziano ficaria desapontado em ouvir isso. Ele tem certeza de que é seu irmão favorito.

— Eu realmente não sei o que é que pode ter dado a ele essa impressão.

— Provavelmente o fato de ainda estar vivo mesmo depois de trinta e cinco anos.

— Isso é porque mamma não me daria sossego se eu matasse qualquer um dos seus filhos. — Cesare ri, e eu ergo uma sobrancelha questionadora.

Meu irmão me encara como se não soubesse se eu estou falando sério. Eu jamais derramaria meu próprio sangue a menos que haja um motivo justo para isso e, embora muitas vezes eu tenha desejado que sim, a capacidade de me irritar do subchefe não pode ser considerado um. Cesare sabe disso.

— Você irá para as Américas comigo. — informo sobre a decisão que tomei esta manhã.

— Adam Scott. — Ele presume.

— Ouvi dizer que ele tem uma bela família. Acho que eles adorariam uma visita do Michelangelo[5] da Sagrada. Vamos ver o que ele faz com o sonho americano. — Cesare sorri. Um sorriso ainda mais vazio que seus olhos azuis.

— Arte. O que mais seria?

***

Paolo estaciona, mas mantenho meus olhos atentos ao Ipad em minhas mãos. Tecnologia é, de fato, uma das poucas coisas que os maledetos norte-americanos sabem fazer com qualidade. Dario é o primeiro a sair do carro, saltando do banco da frente do Volvo[6] adaptado para comportar a mim e aos cinco homens que estão sempre ao meu redor.

Salvatore é o próximo, abrindo a porta à minha esquerda e deixando o banco traseiro em frente ao meu, já com sua arma em punho. Minha mente, embora atenta ao artigo sobre uma nova variedade de uva sendo criada em laboratório, não se desliga da costumeira rotina se segurança sendo executada do lado de fora do blindado.

Ainda que não houvesse um ponto eletrônico em meu ouvido esquerdo, me notificando de cada etapa cumprida do processo, seria impossível me desligar dele. A esta altura, ele já pulsa em minhas veias tanto quanto o sangue italiano.

A Cantina[7] Santo Monte tem sido o lar dos Cataneo desde o século XIX, quando Giuseppe Cataneo e seu irmão gêmeo reuniram o primeiro grupo do que, no futuro, se dividiria em Cosa Nostra e La Santa: as duas máfias mais antigas da Itália.

Ainda assim, nem mesmo aqui, a casa em que nasci e cresci e, antes disso, cada um dos meus ancestrais o fez, os procedimentos de segurança são dispensáveis. Leva três minutos para a verificação da área externa e mais cinco para a do hall da entrada principal da casa.

Quando saio do carro, ladeado por Luigi e Antonio, o cheiro das uvas, cobrindo cada centímetro dos quilômetros e quilômetros das nossas terras, domina meu olfato de uma única vez.

Meus pés esmagam o cascalho no caminho até a porta de entrada por onde somente eu passo. Meus homens de confiança ficam do lado de fora, suas vozes, no entanto, permanecem em minha cabeça, me mantendo informado de tudo o que interessa.

Luigia, a governanta de minha mãe, já está a postos, esperando pelo meu paletó, que eu retiro e entrego a ela antes de seguir até o lavabo do vestíbulo[8].

— As entradas já são servidas frias, Vitto. Você não precisa nos fazer esperar por horas, todas as noites, só porque não gosta de comida quente. Elas vão estar ao seu gosto chegue você na hora marcada per cena [9]ou duas horas depois, como sempre, aliás. — Tizziano me recebe na sala de jantar com a mesma reclamação de sempre.

— Tizziano! — Mamma o repreende imediatamente apenas para ganhar um sorrisinho e uma piscadela galanteadoras do seu segundo filho.

— Ciao. — cumprimento ao entrar. A cabeceira da mesa é o único assento ainda vazio e eu o ocupo, ficando ladeado por mio padre à minha direita e por Tizziano à esquerda.

— Ciao, figlio mio. — Sentada depois de mio padre, mamma responde, estendendo a mão por sobre a mesa para alcançar a minha.

Eu me inclino para que ela possa beijar as costas da minha mão em um gesto de boas-vindas. Logo depois, com um aceno, ela indica aos empregados da casa que comecem a servir o jantar.

— Grazie Dio! — Tizziano resmunga, e eu não lhe digno um olhar.

Mantendo a tradição de aversão ao silêncio de toda boa mesa italiana, Mamma não espera nem mesmo que as entradas tenham terminado de ser postas sobre a mesa para começar a falar.

— Estou pensando em convidar Michela para jantar, domani[10]. — diz, como se não tivesse nenhuma intenção com tal convite.

Eu finjo que desconheço seus motivos, embora esteja perfeitamente consciente deles. Assim como estive na semana passada, na retrasada, na anterior a essa e em todas as outras em que minha mãe convidou uma boa filha da Sagrada, criada para ser uma perfeita esposa da máfia, para o jantar.

Não para o almoço. Refeição que cada um de nós faz onde estiver, na rua ou em sua própria ala desta casa, mas para o jantar. O único momento do dia em que é garantido que todos os seus filhos estarão à mesa incontestavelmente, a menos que alguém esteja morto.

— Tenho certeza de que os Abelli vão ficar muito felizes com a sua gentileza. — comento enquanto sirvo meu prato, e Tizziano cospe a água que estava prestes a beber.

Buono manieri[11], Tizziano! — Mamma o repreende imediatamente e meu irmão pede desculpas com um gesto silencioso, engolindo a risada. Sua segunda repreensão vem na forma dos olhos estreitados de Anna Cataneo. — E Michela tem uma irmã. Vou convidar Liliana também.  — Ela diz, em seguida. — Talvez uma esposa dê um jeito em você!

— Por que a senhora não empurra esposas para o Cesare, mamma? E para Gianni? São seus filhos tanto quanto Vitto e eu! — Ele se defende do casamento como se nossa mamma estivesse atirando balas em sua direção, não alianças.

— Cesare já está noivo e Gianni ainda é novo demais para se casar.

— Noivo? De uma morta viva? — Bufa e vira-se em minha direção. — Onde consigo um noivado desses, Don? — Eu o ignoro.

— Maddona mia! — Mamma grita, indignada com as palavras que já saíram da boca do meu irmão um milhão de outras vezes antes. — Cesare não tem culpa da vontade de Dio! E Clara vai acordar! A bambina não é uma morta-viva, Tizziano! Ela só está em coma! Nós estamos rezando por isso.

— Há doze anos, mamma!  Há doze anos! Se Dio quisesse fazer esse milagre, ele já teria feito. — Mamma amaldiçoa baixo antes de responder ao filho, enquanto o restante de nós come.

Eu honestamente não sei se receber visitas para o jantar é mais ou menos inconveniente do que nossos jantares previsivelmente nada rotineiros. Lidar com as convidadas mudas e recatadas de minha mãe é, com certeza, bem mais silencioso do que as discussões que os comentários de Tizziano sempre iniciam quando estamos apenas em família.

— Tuo fratello[12] ainda não tem trinta anos, Tizzi! — Volto a prestar atenção na conversa quando mamma defende Gianni. O assunto noivado de Cesare foi deixado de lado, então. O único comprometido entre os irmãos Cataneo tem um sorriso disfarçado no rosto.

Cesare não tem uma opinião muito diferente da de Tizziano quando o assunto é sua noiva. Nenhum de nós além de minha mãe têm, na verdade. Mas para ele interessa somente que, enquanto a garota estiver viva, eu não posso comprometê-lo com mais ninguém. Não importa se ela está acordada ou dormindo.

Meu irmão foi prometido à Clara quando os dois ainda eram crianças em um acordo de território feito por mio padre. As pessoas dizem que na máfia, tudo termina em sangue ou casamento e é verdade. Às vezes, termina nos dois.

Francesco Cataneo foi um Don sensato. Mio padre é um homem sensato, no todo, talvez o único ato de insensatez que ele cometeu na vida tenha sito trazer Tizziano ao mundo. Os acordos feitos durante seu período de liderança trouxeram crescimento para os negócios da Sagrada, tanto para os lícitos quanto para os outros. Na verdade, se não fosse pela sua doença, ele teria se afastado há cinco, seis anos atrás, ao invés de doze.

O câncer na tireoide, no entanto, comprometeu muitas das suas habilidades e reflexos e, como o bom homem de honra que sempre foi, papa abdicou da posição de comando pelo bem da La Santa como fez toda e qualquer outra coisa em sua vida. Essa foi a primeira coisa que ele me ensinou quando meu avô morreu, décadas atrás: um bom Don não é aquele que coloca seu poder à disposição da organização. Um bom Don é aquele que se coloca à disposição do poder da organização.

Encontro seu olhar à espreita. Se não fosse pelo cilindro de oxigênio atrás de sua cadeira, dificilmente alguém diria que Francesco Cataneo é um homem doente. Os milhares de euros gastos nos tratamentos mais avançados que existem têm se mostrado mais do que justificados.

Mio padre indica a recente discussão de Tizziano e mamma com um aceno curto antes de balançar a cabeça, mas eu sei que, ao contrário de mim, que definitivamente preferiria o silêncio, ele gosta desse caos.

Há muitas coisas nas quais me descobri melhor do que Francesco ao longo dos anos. Manter a parte sombria do que fazemos da porta para fora em equilibro com quem mammas e esposas gostariam que fôssemos da porta para dentro não é uma delas.

— Eu quero ser avó! — Mamma resmunga alto para ninguém em particular e para todos, ao mesmo tempo.

Gianni esconde a risada com uma tosse, afinal, ela o estava defendendo ainda há pouco. Não seria mesmo inteligente desagradá-la agora. Decido que essa é uma hora tão boa quanto qualquer outra para mudar de assunto.

—  Já temos o estudo da vendemmia[13] desse ano, Gianni?

— Nos próximos dias. Quando você voltar do Brasil, provavelmente já o teremos.

— Buono.

— Vendemmia… Vendemmia… Só falam de negócios, ninguém quer me dar netos! — Mamma resmunga alto o suficiente para que toda a Sicília escute antes de levar sua bruschetta[14] à boca.

6. GABRIELA MATOS

— Por favor, Dez! Eu vou pagar! Só preciso de mais uma semana. — imploro quando o homem apoia uma escada no poste ao lado da minha casa.

Não me restou outra opção depois de ter sido escorraçada por duas mulheres diferentes em menos de 24 horas. Acontece que Andressa não ficou nada feliz em saber que eu havia perdido o uniforme de trabalho e se recusou a me pagar a faxina que me fez atravessar a cidade com quase nenhuma roupa.

A gerente da empresa de limpeza para a qual eu estava prestando serviços praticamente me expulsou do escritório ontem à tarde, com uma mão na frente e a outra trás, dizendo que se eu quisesse ter a possibilidade de fazer alguma outra faxina para eles, deveria sair enquanto ela ainda não me odiava e voltar num dia em que eu não a tivesse irritado profundamente.

— Você disse isso na semana passada, Gabi.

— Eu sei! Eu sei! — Estendo as mãos da frente do corpo, colocando-me entre ele e os degraus de madeira. — Eu tinha o dinheiro, Dez. Eu tinha, mas rolou um imprevisto e minha irmã tá voltando pra casa hoje, a gente não pode ficar sem energia. Você sabe que a Raquel tem a saúde frágil, por favor, Dez? Por favor? Só mais uma semana?

— Eu só obedeço ordens, Gabi. Não pagou, eu tenho que cortar! Sabe como é. — nega e cruza os braços na frente do corpo.

O homem de pele avermelhada e entradas acentuadas me encara sem qualquer sinal de comoção com a minha situação. Passo as mãos pelos cabelos, resistindo à vontade de puxá-los até sentir dor.

— Qualquer coisa, Dez. Por favor! Eu faço qualquer coisa! — negocio e coloco as mãos na cintura sem sair do lugar, com medo de que se eu lhe der qualquer brecha, Dez vá simplesmente subir no poste e cortar meu gato. — Eu não posso ficar sem energia. Não posso. O que você quiser! Precisa de alguém pra limpar sua casa? Eu limpo! Passar roupas? Conta comigo! Eu cozinho pra você, levo seu cachorro pra passear, eu topo qualquer trabalho, só, por favor, me dá mais uma semana.

Dez é um velho conhecido das minhas desculpas e dos meus pedidos desesperados. Ao contrário do que se imaginaria, um barraco na beira da linha férrea não é uma moradia livre de taxas. Pelo menos, não as que importam.

Não tem água encanada nem esgoto, e a energia é roubada do poste, mas, ainda assim, há quem cobre por cada um desses serviços. E, se uma pessoa armada te diz que você precisa pagar por alguma coisa, você paga. O crime organizado do Rio de janeiro é, de fato, muito mais organizado do que a política.

Há sete anos moramos aqui e há sete anos a prefeitura promete nos remover. A remoção nunca veio, mas os emissários dos traficantes que tomaram a área como sua nunca atrasam nos dias de recolhimento das taxas.

Morei no morro da Estação, uma das muitas favelas do Rio de janeiro, dos meus primeiros dias de vida até sermos expulsos de lá depois que meu pai arrumou confusão com um traficante. Minha mãe havia falecido havia apenas um ano, o mesmo tempo que Raquel tinha de vida. Nós a perdemos no parto de minha irmã mais nova.

Eu tinha, naquela época, a idade que Raquel tem hoje e já havia me tornado responsável por outro ser humano. Três outros, se levarmos em consideração que Fernanda, embora apenas um ano mais nova do que eu, nunca foi realmente capaz de cuidar de si mesma. Agora, aos dezessete anos, ela ainda não é.

E meu pai, ainda que não tivesse alcançado seu atual estado de prostração, já estava se afundando na bebida sem se importar com a existência de suas três filhas menores de idade, que não pediram para nascer.

— Qualquer coisa? — Dez questiona, olhando-me de cima a baixo com uma expressão muito fácil de entender.

— Menos isso! Isso não! — Me apresso em avisar, e ele estala a língua, fingindo desapontamento.

— Uma pena, Gabi. Eu pagaria sua taxa. Na verdade, eu pagaria o que mais você quisesse. Te daria uma vida de rainha. — Engulo a risada, porque não posso ofendê-lo, ainda que o homem vestindo calças jeans e camiseta desbotadas diante de mim bem que mereça algumas ofensas.

Eu posso não me lembrar de muita coisa do que estudei na escola sobre as monarquias, mas eu tenho certeza de que Dez não poderia me dar uma vida de rainha nem em um milhão de anos.

— Você é casado, Dez.

— E por que isso é importante?

— Dez, nós estamos perdendo o foco aqui.

— Não, Gabi. Você está é perdendo tempo. Não tem negócio, infelizmente, eu vou ter que cortar a sua luz.

— Dez… — começo, mas ele me interrompe.

— E você sabe que não pode religar. — abaixa o tom de voz para um aviso sussurrado e amigável. — É melhor sua irmã ficar sem luz do que sem teto. — cochicha, e eu sei exatamente do que ele está falando.

Da última vez que alguém decidiu tentar burlar o sistema de taxas, foi expulso daqui com o couro quente, alguns dentes faltando e nada além das roupas do corpo.

— Não é possível que não tenha nada que eu possa fazer, pelo amor de Deus! Qualquer coisa! Qualquer coisa! — repito feito um papagaio, mas, dessa vez, não é com Dez que falo.

É com Deus, com o universo, com o planeta, com qualquer entidade que esteja disposta a ouvir uma garota de dezoito anos exausta de ouvir nãos. Qualquer uma. Eu aceito qualquer uma. Dez, no entanto, é o único a ouvir minhas palavras quase gritadas. Ele desvia os olhos por alguns segundos, antes de soltar uma expiração profunda.

Quando seus olhos escuros voltam a encarar os meus, a expressão em seu rosto anuncia que, o que quer que ele esteja prestes a sugerir, vai embrulhar meu estômago.

— Tem uma coisa. — admite, e eu engulo em seco. — Não é pra mim, é pros chefes. Eles estão recrutando gente, mulheres, pra um esquema.

A palavra chefes deveria ser o suficiente para me fazer dar as costas a Dez e à sua sugestão. Mas situações desesperadas pedem medidas desesperadas. e até mesmo dessa fase eu já passei.

Eu tenho no máximo doze horas até precisar buscar Raquel no hospital e nenhuma perspectiva de como garantir que nossa casa continue tendo energia elétrica. Eu não tenho nem um real sequer para comprar a comida ou os remédios de que minha irmã precisa. Nada. Eu não tenho nada. O que eu ainda poderia perder?

— Esquema? — pergunto, contra todos os meus instintos de autopreservação.

— Troca de malas no desembarque do aeroporto, Gabi.

— Troca de malas no desembarque do aeroporto. — repito, baixinho, para mim mesma. — Eu não sou uma ladra, Dez.

— Nem eu, mas a gente faz o que a gente tem que fazer.

— Isso não.

— Então, eu sinto muito. Espero que você consiga o dinheiro rápido. Eu vou deixar meu número, você só precisa me telefonar, e eu volto pra religar sua luz.

— Eu não tenho um celular, Dez. — respondo no automático enquanto minha mente percorre o mundo inteiro sem sair do lugar e eu sinto o ar escapar do meu corpo sem fazer qualquer questão de retornar.

— Dona Maria tem um. Pede a ela pra me ligar, pode ser a cobrar.

Eu tinha esperanças. Estúpida, eu tinha esperanças. Eu… Eu achei que poderia convencer Dez. Que poderia dar um jeito. Eu achei que… Eu achei que ele não me empurraria com cuidado para o lado e subiria no poste, mesmo depois de todos os meus pedidos, mas ele empurra e sobe.

Porque na sucessão de falhas que é a minha vida, essa vai ser apenas mais uma para a conta. Eu não pude garantir a saúde da minha irmã, eu não pude ajudar Fernanda a crescer uma mulher decente, eu não pude fazer nada enquanto via meu pai se destruir, pedaço por pedaço, até que só sobrasse a casca, porque não importa o que eu faça, eu nunca sou o suficiente. Eu nunca sou.

O bolo na minha garganta é apenas mais um obstáculo para a minha respiração desinteressada em acontecer. Meus olhos não piscam, eles permanecem abertos, sendo secos pelo vento quente enquanto eu sinto cada um dos meus órgãos ser esmagado uma vez mais até que eu abra a boca para dizer as palavras que eu jurei que nunca diria. Até que, sem saída, eu negocio o último pedaço de mim que eu tinha a certeza de que jamais negociaria.

— Eu faço, Dez. — digo alto o suficiente para que ele me ouça, mesmo metros acima, na escada. — A troca de malas. Eu faço.

***

Uma vez, Gabriella. Uma vez e nunca mais. Repito silenciosamente enquanto, escondida pelo muro do estacionamento, olho para a área de desembarque.  O Aeroporto Internacional Tom Jobim[15] é um mundo inteiro de tão grande, com tantas entradas e saídas que teria sido impossível não me perder. Eu me perdi.

As batidas frenéticas do meu coração mal me deixam ouvir meus próprios pensamentos debochados, mas eu me agarro a eles. Eles são melhores do que qualquer um dos outros que infestam minha cabeça agora: culpa, decepção, ansiedade e, é claro, certeza de que isso vai dar errado como toda e qualquer coisa na minha vida.

Trinta minutos depois do horário em que eu deveria ter chegado aqui, luto para não me deixar ser dominada pela preocupação. Meu alvo pode simplesmente já ter ido embora, porque eu estava no acesso D, ao invés de no A. E o que exatamente vai acontecer comigo quando eu voltar para os chefes com a mesma mala vazia com a qual saí de lá, ao invés de com uma cheia do que quer que eles estejam esperando receber?

É um esquema simples, na verdade. Seria engraçado se não fosse trágico. Se eu tivesse que imaginar como seria a venda do último pedaço da minha alma, eu definitivamente teria chutado algo mais dramático do que trocar uma mala vazia por uma idêntica que está carregando itens valiosos, segundo informações recebidas de dentro do aeroporto.

E eu achando que os negócios do tráfico se resumiam a venda de drogas e extorsão de inocentes. Pobre Gabriella. Uma tola como nunca se viu igual.

Estou suando em partes do meu corpo onde, até esse momento, eu não sabia ser possível. Mesmo que minhas glândulas sudoríparas e eu sejamos velhas amigas. Faço um “o” com os lábios e sopro o ar devagar, jamais desviando os olhos da calçada de desembarque.

Mala de couro preto com um brasão de aço escovado na lateral. Mala de couro preto com um brasão de aço escovado na lateral. Estou procurando uma mala de couro preto com um brasão de aço escovado na lateral. Vou e volto com o olhar por todas as portas de vidro, observando-as se abrirem e se fecharem repetidas vezes, permitindo a entrada e a saída de todo tipo de gente, ninguém carregando uma mala como a que está parada ao meu lado.

Mala de couro preto com um brasão de aço escovado na lateral, onde está você? Você não pode já ter ido embora, por favor, não tenha ido embora. Faço a prece, nem sei para quem, com os olhos abertos, não me dando a chance de perder qualquer movimento, por mais insignificante que ele seja, na área de desembarque.

Então eu sinto. Uma onda de reconhecimento e calor varre meu corpo inteiro, levantando os pelos da minha nuca sem que eu tenha ideia do porquê, até que eu vejo. Um pequeno exército de homens de preto atravessa as portas à minha direita. Eles caminham numa formação perfeita, digna de um filme de ação de Hollywood: quatro homens à direita, quatro à esquerda, dois na frente, dois atrás.

E, entre os armários vestidos de terno e gravata, com fones nos ouvidos e expressões carrancudas, no centro deles, está o homem mais bonito que eu já vi em toda a minha vida.

Seus cabelos são compridos o suficiente para terem sido penteados para trás, sua pele é de um bronzeado perfeito, e o seu corpo é algum tipo megalomaníaco de obra de arte que, mesmo à distância e coberto por um terno cinza impecável, deixa ver os músculos das suas coxas, dos seus braços e obriga qualquer um a se perguntar como deve ser olhar para ele sem tudo aquilo o cobrindo.

Homens e mulheres observam a pequena comitiva com interesse escancarado, mas ela não se abala. Na verdade, ele parece sequer perceber ou se importar com os olhares sendo atirados em sua direção. Continua caminhando até um canto vazio da área de desembarque. O homem no centro completamente imperturbável, como um deus.

Eu sinto cada nervo do meu corpo responder à sua presença, dos pelos arrepiados na minha nuca até os meus dedos dos pés, inquietos dentro dos tênis desconfortáveis, mas não é a sua aparência que me faz grudar os olhos nele como se ele fosse um frango de padaria e eu, o cachorro do outro lado da vitrine, é… Tudo.

Seu jeito de andar, a maneira como os seus ombros estão perfeitamente eretos e alinhados. É a expressão grave em seu rosto e os olhos escondidos por óculos escuros que eu queria muito ver, apesar da sensação insistente em meu peito me dizendo para correr. É uma confusão inédita para mim.

Nunca realmente olhei para um homem, eu percebo. Porque além de eu não ter tempo para isso, agora eu tenho a impressão de que eu nunca tinha realmente visto um homem, pelo menos, não um como esse. Eram apenas pessoas do gênero masculino. Isso não faz o menor sentido, Deus! Eu não estou fazendo o menor sentido.

Meus instintos me empurram para longe. Meu corpo, no entanto, é atraído em cada célula por ele. Há uma corda invisível, esticando-se a cada passo que ele dá para longe de mim até se tornar esticada demais, pressionando meus órgãos, exigindo aproximação, intimando que eu descubra coisas das quais eu não fazia ideia que precisava saber, até agora.

Qual é o cheiro dele? Como ele respira? Seu corpo é quente?

Eu ofego, perdida em sensações que não são minhas e que, ainda assim, engolem cada centímetro de mim até que um canto sensato de minha mente, o último, me lembra o porquê de eu estar aqui e o porquê de eu precisar sair o mais rápido possível.

Voltar minha atenção para o lugar de onde ela nunca deveria ter saído é um esforço físico. Gotas de suor deslizam pela minha lombar, e minha têmpora lateja em protesto à minha resistência.

O homem para próximo à calçada, esperando seu carro, provavelmente, enquanto emana ondas de poder e perigo dizendo para que toda e qualquer alma com o mínimo de bom senso mantenha distância. Uma mensagem completamente diferente daquela que está sendo recebida por cada uma das fibras do meu corpo.

Aquela corda estala em um puxão, e eu dou um passo na direção do homem sem ter qualquer controle sobre isso, pior, sem que ele tenha consciência do efeito que está causando em mim. É absolutamente irracional, e eu fecho os olhos, bloqueando minha visão dele, tentando quebrar a prisão em que fui colocada, e é somente quando o nome da minha irmã ecoa no vazio confuso da minha mente que consigo.

Expulso todo o ar dos meus pulmões em uma expiração ruidosa e engulo em seco, determinada a deixar de lado o meu surto pelo desconhecido e focar naquilo de que eu nunca deveria ter desviado minha atenção. Fraca, eu ouso roubar mais um olhar assim que levanto minhas pálpebras, o último, garanto a mim mesma.

Quando meus olhos viajam de norte ao sul do seu corpo, e eu finalmente consigo piscar em meio ao feitiço que sua imagem me colocou, eu noto aquilo que está bem ao seu lado: a mala de couro preto com um brasão de aço escovado na lateral.

[1] Expressão equivalente a “desembucha” em italiano.

[2] A Central Intelligence Agency ou Agência Central de Inteligência, é uma agência de inteligência civil do governo dos Estados Unidos responsável por investigar e fornecer informações de segurança nacional para o Presidente e para o seu gabinete.

[3] Doença sexualmente transmissível.

[4] Arena para treinamento de cavalos.

[5] Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni, mais conhecido simplesmente como Michelangelo ou Miguel Ângelo, foi um pintor, escultor, poeta, anatomista e arquiteto italiano, considerado um dos maiores criadores da história da arte do ocidente.

[6]

[7] Vinícola.

[8] Sala de entrada ou passagem entre a sala de entrada e o interior de um edifício qualquer. É nesta sala onde as pessoas deixam casacos, chapéus e outros objetos para adentrarem mais confortavelmente nos edifícios.

[9] “Para o jantar” em italiano.

[10] Amanhã em italiano.

[11] Equivalente a “Tenha modos!” em italiano.

[12] “Seu irmão” em italiano.

[13] Colheita das uvas para fazer vinho.

[14] Bruschetta é um antepasto italiano feito à base de pão, que é tostado em grelha com azeite e depois esfregado com alho.

[15] Aeroporto internacional situado na cidade do Rio de Janeiro.

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